RESUMO
Partindo do pressuposto que a religiosidade figura entre os
fatores que integram o contexto escolar, influenciando de forma significativa a
própria cultura escolar e comunitária e os processos de aprendizagem, este
projeto de pesquisa propôs localizar as práticas e vivências religiosas de
matriz afro-brasileira no ambiente escolar, entre alunos do 1º ao 5º ano do
Ensino Fundamental, em quatro escolas públicas, sendo três em dois grandes
bairros periféricos e uma no centro de Leopoldina, município de 53 mil
habitantes, na Zona da Mata de Minas Gerais. A opção por investigar a
incidência de práticas religiosas de matriz afro-brasileira nessa faixa-etária
surgiu a partir da pouca visibilidade do tema, percebida em um levantamento
prévio, em uma destas escolas, como também o aparente desconhecimento dos
aspectos da cultura afro-brasileira, presente em tais práticas, símbolos e
mitos. Buscou-se ainda, refletir sobre a aplicabilidade da Lei 10.639/2003, no
que tange a questão das manifestações da cultura afro-brasileira através da
religiosidade, considerando os processos de construção de nossas identidades,
seja pelo percurso histórico ou pelos aspectos étnicos. Como metodologia,
observação participante ao ambiente escolar, análise documental, aplicação de
questionários, por amostragem, junto às famílias e coleta de dados junto aos
alunos através de resposta direta destes a partir de “rodas de conversas”, abrangendo,
aproximadamente, mil alunos no total. Espera-se com esta pesquisa, abrir um
leque para um maior aprofundamento das questões aqui suscitadas, na reflexão e
identificação dos fatores socioculturais que caracterizam os grupos sociais ao
mesmo tempo em que são tipificados por estes.
Palavras-chave: Religião.
Religiosidades Afro-brasileira. Contexto Escolar. Cultura. Identidade
________________________________________________________________________________
Aprofundar
nas questões contextuais no ambiente escolar é buscar compreender melhor este
contexto em todos os seus aspectos, intra e extra-escolares[1],
possibilitando assim, relacionar o que ocorre, permeia e ultrapassa os
processos escolares para a aprendizagem, na rotina escolar. Muitas das
interrogações que suscitam o trabalho dos professores, da coordenação
pedagógica e, por conseguinte, da gestão escolar, podem encontrar respostas ou
minorar os anseios, na medida em que se observa e busca compreender os diversos
movimentos, acontecimentos e comportamentos que caracterizam o ambiente
escolar.
E
sob este aspecto, a religiosidade pode ser considerada como um fator pertinente
de observação e análise do contexto escolar, por estar principalmente vinculada
ao próprio processo histórico e cultural da humanidade. Na sua análise sobre “o
que é religião” Alves (1999) relaciona a religiosidade nos contextos culturais,
sociais, antropológicos, psicológicos e políticos, no transcurso da história
humana. Tendo como premissa a constatação de que o homem se vê como um ser inacabado,
que precisa “se fazer” a cada instante, diferente do animal, que nasce com sua
programação biológica completa (ALVES, 1999, p.18), o autor ressalta que na
ânsia de transcender seu estado animal, os homens tornam-se “inventores de
mundos” (ALVES, 1999, p.19) e assim produzem cultura e a religião surge nessa
relação, como “[...] teia de símbolos, rede de desejos, confissão de espera,
horizontes, a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a
natureza” (ALVES, 1999, p.24).
E
em um mundo de incertezas, de mistérios que conduzem ao limiar da falência
humana na expectativa da morte, a religião faria a ponte entre o passado –
buscando na ancestralidade as justificativas para muitas das agruras do
presente –, e o futuro, através da esperança em dias melhores e pela
possibilidade de salvação e/ou remissão dos homens. Nessa tentativa de
encontrar sentido para a própria existência, aconteceria o que Alves (1999, p.125)
destaca como sendo o que mantém a experiência religiosa viva, ou seja, “[...]
horizontes utópicos que os olhos não viram e que só podem ser contemplados pela
magia da imaginação”. Assim, como um jogo de luz e sombras, o caminho
percorrido pelos homens, entre ausências, consciência, alienação, linguagens,
símbolos, sagrado, profano, faz constatar que “a consciência de Deus é
autoconsciência; o conhecimento de Deus é autoconhecimento” (FEUERBACH apud ALVES 1999, p.13).
Em
seu estudo sobre o impacto da religião no desempenho educacional, Cunha (2012,
p.02) destaca a “importância crescente do tema, a escassez bibliográfica no
Brasil e a recente mudança no quadro religioso brasileiro”, como fatores que em
si já justificam trabalhos nessa linha. Referenciando Regnerus e Elder (2003),
a autora afirma que
As igrejas reforçam as relações de suporte e controle
familiar, assim como também normas baseadas no seu poder como uma instituição
formal. A religião pode ser vista como uma segunda influência social nos
adolescentes (sendo a família a primeira), assim como também a escola e os
amigos, e é vista como capaz de afetar as crenças, atitudes e comportamento
através de mecanismos como controle social, suporte social e valores (CUNHA
2012, p.02)
Percebe-se
nessas afirmativas que a religiosidade como parte intrínseca das vivências
pessoais e sociais não deveriam ser negligenciadas nas análises sócio-culturais
e econômicas e, por conseguinte, no contexto educacional. Smith (2003, apud CUNHA 2012, p.96) sugere que a
religião pode influenciar socialmente através de três dimensões: “1) ordem
moral, 2) competência de aprendizado e 3) laços sociais e organizacionais”.
Em meio a essas
reflexões e questionamentos, valendo-se da premissa que a religiosidade é
preponderante no desempenho educacional e que a religião se manifesta de
diferentes modos entre os indivíduos e seus grupos sociais, há de se considerar
os processos que, no âmbito educacional, podem contribuir para o reconhecimento
das identidades. Freire (1996) afirma que o ato de ensinar “exige o
reconhecimento e a assunção da identidade cultural” (FREIRE, 1996, p.41).
Pensando o processo educativo como processo dialético e dinâmico, o autor
insiste que “Não há
prática docente verdadeira que não seja ela mesma um ensaio estético e ético [...]”
(FREIRE, 1996, p.45) e propõe um exercício consciente e crítico na prática
educacional, como uma vivência de reconhecimento de si para o reconhecimento do
outro; é a proposta do “assumir-se”, em todas as suas dimensões e instâncias. Freire
(1996, p.41) enfatiza que
Uma
das tarefas mais importantes da prática educativa-crítica é propiciar as
condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o
professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se.
Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante,
transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz
de amar.
O respeito à
identidade cultural, segundo o autor, é de fundamental importância para o
desenvolvimento do que ele intitula de “prática educativa progressista”,
integrando esta identidade cultural, à dimensão individual e coletiva dos
educandos. Na concepção do autor seria a possibilidade de construção de um
saber a partir do reconhecimento de si, através da “outredade”, ou seja, “a
assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros” (FREIRE, 1996,
p.41). Assumir a identidade cultural, manifestada implícita ou explicitamente no
universo escolar, poderia abrir para uma construção coletiva e democrática do
saber, que corresponda mais efetivamente com as peculiaridades das comunidades,
o que seria uma atitude em si, mais ética e menos imperativa, contribuindo
inclusive, para o acesso de grupos socialmente marginalizados – como os
negros/afrodescendentes –, a um percurso educacional mais qualitativo.
Na interface
entre o contexto escolar – seja considerando fatores intra e extra-escolares –
as questões referentes à identidade cultural vão se relacionar com a própria
cultura escolar, sendo indicado esse aprofundamento, para um melhor entendimento
das reflexões aqui elencadas. Segundo Julia (2001, p.10),
[...] poder-se-ia descrever a cultura escolar como
um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a
inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas
coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades
religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
Na definição
proposta pelo autor, que aborda a cultura escolar como objeto histórico,
percebe-se a interdependência da cultura escolar com o que Júlia (2001, p.10)
chama de “conjunto das culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa,
cultura política ou cultura popular”; ou seja, a cultura escolar estaria
baseada em práticas e na difusão de conhecimentos pré-definidos pelo próprio
contexto social, também determinado pela conjuntura política, econômica e
cultural daquele povo.
Situando a
pesquisa junto à faixa-etária de seis a dez anos, entre alunos dos anos
iniciais do ensino fundamental, vale considerar o que diz Campos (2009, p.152),
sobre o fato de alguns autores apresentarem “resistência em relação ao
testemunho infantil como fonte de pesquisa confiável e respeitável”. A autora
destaca ainda, a “importância da criança nas chamadas religiões
afro-brasileiras”, além de outras religiões, mas ressalva que mesmo que estas
alcancem algum destaque social, tal fenômeno acaba por “não ser problematizado
teoricamente, permanecendo como resíduo nas observações etnográficas” (CAMPOS,
2009, p.151). Haveria nessa prática a pouca escuta da voz infantil e
consequentemente certo descrédito do que viria da fala dos “pequenos”.
Na
perspectiva de tentar relacionar a dinâmica entre a invisibilidade da religiosidade
oriunda da matriz afro-brasileira nas escolas e a vivência das crianças nesse
campo, em seu meio social, destaca-se a contribuição de Candau (2008, p.54),
citando o “empoderamento” daqueles que no seu percurso histórico, foram
alijados da possibilidade de influenciar em decisões coletivas. A autora
orienta sobre a necessidade do trabalho com “grupos sociais minoritários,
discriminados, marginalizados, etc.” (CANDAU, 2008, p.54), argumentando ainda
sobre os desafios para uma “educação intercultural”, ressaltando:
As relações entre direitos humanos, diferenças
culturais e educação colocam-nos no horizonte da afirmação da dignidade humana
num mundo que parece não ter mais essa convicção como referência radical. Nesse
sentido, trata-se de afirmar uma perspectiva alternativa e contra-hegemônica de
construção social, política e educacional. (CANDAU, 2008, p.54)
Localizar
essas diferentes identidades culturais, entrelaçadas com o universo religioso,
objeto desta pesquisa, é também adentrar nessa seara de afirmação cultural,
identitária que seria a própria afirmação da dignidade humana, como destaca Candau
(2008, p.54). Permitindo que as crianças tenham voz e possam transparecer seus
universos na construção de uma proposta de educação intercultural.
Na vertente da
religiosidade de matriz afro-brasileira no campo da cultura, é destaque o que
preconiza a Lei 10.639/2003, quando estabelece, no seu Art. 26-A, a
obrigatoriedade para todos os estabelecimentos escolares, do “ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira”. E em relação ao conteúdo programático, o
§1º do referido artigo, determina incluir “o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição
do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do
Brasil”, destacando ainda no §2º, que os conteúdos devem ser ministrados “no
âmbito de todo o currículo escolar”.
Mas na interface
curricular é importante considerar o que é explícito nos currículos e o que
fica nas entrelinhas como um currículo oculto, que aparentemente não é visível,
mas que está presente nos processos de ensino aprendizagem e pode vir a
legitimar, em grande parte, as ideologias predominantes e/ou o que
culturalmente tenta-se manter ou romper. Moreira e Candau (2007, p.22), vão
assim conceituar currículo como:
Experiências
escolares que se desdobram em torno do conhecimento, permeadas pelas relações
sociais, buscando articular vivências e saberes dos alunos com os conhecimentos
historicamente acumulados e contribuindo para construir as identidades dos
estudantes.
Percebe-se a amplitude da
concepção, que parte do conceito de cultura como prática social e abre um leque
de possibilidades entre os “saberes” dos alunos e os demais saberes
institucionalizados, ou seja, espera-se que a concepção de um currículo
totalmente impositivo, baseado numa ideologia para o controle social, tenha
ficado pra trás, não devendo ocupar mais os bancos acadêmicos – pelo menos na
ótica da intenção de uma educação transformadora.
Refletir sobre um currículo
que atende ao que preconiza a Lei 10.639/2003 é também trazer à pauta os
conteúdos que consideram as religiões de matriz afro-brasileira no seu aspecto
cultural, histórico, social e também, na vivência religiosa de cada um ou nos
grupos e segmentos representativos. Em um desdobramento dessas análises e
reflexões, pode-se inferir que, na abordagem sobre as religiões que trazem
consigo raízes afro-brasileiras, cabe atentar para o fato de que, parte da
invisibilidade ou negação a estas manifestações, se dê pelo racismo aos grupos
étnicos afro-brasileiros, levando a crer que, muito da chamada intolerância
religiosa a essas práticas, seria manifestação de racismo. Possível seria ainda
que o desvelar sobre as questões étnicas, envolvesse também a localização dos
adeptos das religiões de matriz afro-brasileira na escola, reconhecendo os
aspectos identitários que os representam, descortinando muitas das informações
que ficam ocultas, delimitadas pelo que ainda seria ou não considerado como
aceitável entre os grupos sociais.
Analisando o PRÉ-RELATÓRIO
SOBRE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL (CCIR, 2015)[2], constata-se que, no caso
das religiões afro-brasileiras, o percentual de registros de denúncias de
discriminação e intolerância, é consideravelmente maior que as demais. No nível
estadual, no caso do Rio de Janeiro, de 2012 a 2014 consta no relatório o
percentual de 71,15% de casos contra as religiões afro-brasileiras. E na Comissão
de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR), de 2008 a 2014, entre as religiões
com maior número de Boletins de Ocorrência, constam 26% de registros de
reclamantes das religiões afro-brasileiras, em contraponto a 15% de Espíritas –
sendo que, o próprio relatório destaca a generalização que muitos fazem do seu
pertencimento religioso, quando se declaram como espíritas, quando na verdade, professam
religiões afro-brasileiras. Outro dado significativo que o relatório apresenta
e que denota o possível silêncio na assunção religiosa de cada um, é que chegam
a 70% nas notificações, os casos de agressão verbal, sendo mais comum nas
ofensas, o uso de expressões como: “macumbeiros” e “filho do demônio”. O texto
do relatório chama a atenção para o fato de que “as pesquisas revelaram ser uma
estratégia de proteção declarar-se católico e/ou espírita, tanto nos empregos,
quanto nas comunidades em que vivem” as pessoas, “considerando que há
subenumeração no total de registros das religiões afro-brasileiras” (CCIR,
2015, p.8), mesmo que tenham sido realizadas campanhas por ocasião do Censo
2010. O texto suscita ainda alguns questionamentos e reflexões:
Por
que o Candomblé com suas diferentes nações não são tipificados e apurados? É
uma pergunta que o segmento religioso deve pensar e traçar trajetórias de
realização. Não há igualdade de critério nas classificações. É necessário fazer
um trabalho de valorização e aumento da autoestima, um caminho possível para
vencer preconceitos, discriminações e intolerância de todos os tipos. (CCIR, 2015,
p.9)
Dados como estes ajudam a
enfatizar a necessidade de buscar cada vez mais a especificidade, as
particularidades, valorizando e respeitando as condições de cada pessoa, na sua
crença, origem, etnia e posição social. Trazer para o cotidiano escolar essas
questões é fundamental, para que as pessoas assumam suas pertenças religiosas
sem o medo de serem intituladas como os “filhos do demônio”.
[1]
Destacam-se como fatores intraescolares, entre outros: clima; comportamento e
atitudes dos alunos e do professor (motivação, dedicação e absenteísmo);
conhecimento do professor sobre as avaliações de larga escala; organização e
gestão da escola, condições físicas da sala de aula e, como fatores
extraescolares: nível sócioeconômico dos alunos, suas condições de vida e
subsistência. Fonte: Programa de Avaliação da Educação Básica do Sistema
Mineiro de Avaliação e Equidade da Educação Pública – PROEB/SIMAVE – SEE/MG/
CAEd/UFJF, disponível em: <http://www.simave.caedufjf.net/> Acesso em 22
dez 2016.
[2]
A CCIR – Comissão de Combate a Intolerância Religiosa em parceria com o Centro
de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP); o Laboratório de História
das Experiências Religiosas do Instituto de História da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (LHER-IR/UFRJ) e o Movimento Inter-Religioso (MIR), realizaram
levantamento e análise de fontes disponíveis sobre a questão da intolerância
religiosa no Brasil, que culminou em um pré-relatório divulgado em agosto de
2015. Entre as fontes, os casos de denúncia sobre discriminação e intolerância
religiosa através do “Disque 100”, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH),
indicando os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais no topo das
denúncias. Disponível em: <http://www.ceubrio.com.br/downloads/relatorio-Intolerancia-religiosa-18-08-2015.pdf>.
Acesso em 22 dez 2016.
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