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segunda-feira, 18 de junho de 2018

RELIGIOSIDADE E CONTEXTO ESCOLAR: O “NÃO LUGAR” DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRO-BRASILEIRA

RESUMO
Partindo do pressuposto que a religiosidade figura entre os fatores que integram o contexto escolar, influenciando de forma significativa a própria cultura escolar e comunitária e os processos de aprendizagem, este projeto de pesquisa propôs localizar as práticas e vivências religiosas de matriz afro-brasileira no ambiente escolar, entre alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, em quatro escolas públicas, sendo três em dois grandes bairros periféricos e uma no centro de Leopoldina, município de 53 mil habitantes, na Zona da Mata de Minas Gerais. A opção por investigar a incidência de práticas religiosas de matriz afro-brasileira nessa faixa-etária surgiu a partir da pouca visibilidade do tema, percebida em um levantamento prévio, em uma destas escolas, como também o aparente desconhecimento dos aspectos da cultura afro-brasileira, presente em tais práticas, símbolos e mitos. Buscou-se ainda, refletir sobre a aplicabilidade da Lei 10.639/2003, no que tange a questão das manifestações da cultura afro-brasileira através da religiosidade, considerando os processos de construção de nossas identidades, seja pelo percurso histórico ou pelos aspectos étnicos. Como metodologia, observação participante ao ambiente escolar, análise documental, aplicação de questionários, por amostragem, junto às famílias e coleta de dados junto aos alunos através de resposta direta destes a partir de “rodas de conversas”, abrangendo, aproximadamente, mil alunos no total. Espera-se com esta pesquisa, abrir um leque para um maior aprofundamento das questões aqui suscitadas, na reflexão e identificação dos fatores socioculturais que caracterizam os grupos sociais ao mesmo tempo em que são tipificados por estes.   

Palavras-chave: Religião. Religiosidades Afro-brasileira. Contexto Escolar. Cultura. Identidade
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Aprofundar nas questões contextuais no ambiente escolar é buscar compreender melhor este contexto em todos os seus aspectos, intra e extra-escolares[1], possibilitando assim, relacionar o que ocorre, permeia e ultrapassa os processos escolares para a aprendizagem, na rotina escolar. Muitas das interrogações que suscitam o trabalho dos professores, da coordenação pedagógica e, por conseguinte, da gestão escolar, podem encontrar respostas ou minorar os anseios, na medida em que se observa e busca compreender os diversos movimentos, acontecimentos e comportamentos que caracterizam o ambiente escolar.
E sob este aspecto, a religiosidade pode ser considerada como um fator pertinente de observação e análise do contexto escolar, por estar principalmente vinculada ao próprio processo histórico e cultural da humanidade. Na sua análise sobre “o que é religião” Alves (1999) relaciona a religiosidade nos contextos culturais, sociais, antropológicos, psicológicos e políticos, no transcurso da história humana. Tendo como premissa a constatação de que o homem se vê como um ser inacabado, que precisa “se fazer” a cada instante, diferente do animal, que nasce com sua programação biológica completa (ALVES, 1999, p.18), o autor ressalta que na ânsia de transcender seu estado animal, os homens tornam-se “inventores de mundos” (ALVES, 1999, p.19) e assim produzem cultura e a religião surge nessa relação, como “[...] teia de símbolos, rede de desejos, confissão de espera, horizontes, a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza” (ALVES, 1999, p.24).
E em um mundo de incertezas, de mistérios que conduzem ao limiar da falência humana na expectativa da morte, a religião faria a ponte entre o passado – buscando na ancestralidade as justificativas para muitas das agruras do presente –, e o futuro, através da esperança em dias melhores e pela possibilidade de salvação e/ou remissão dos homens. Nessa tentativa de encontrar sentido para a própria existência, aconteceria o que Alves (1999, p.125) destaca como sendo o que mantém a experiência religiosa viva, ou seja, “[...] horizontes utópicos que os olhos não viram e que só podem ser contemplados pela magia da imaginação”. Assim, como um jogo de luz e sombras, o caminho percorrido pelos homens, entre ausências, consciência, alienação, linguagens, símbolos, sagrado, profano, faz constatar que “a consciência de Deus é autoconsciência; o conhecimento de Deus é autoconhecimento” (FEUERBACH apud ALVES 1999, p.13).
Em seu estudo sobre o impacto da religião no desempenho educacional, Cunha (2012, p.02) destaca a “importância crescente do tema, a escassez bibliográfica no Brasil e a recente mudança no quadro religioso brasileiro”, como fatores que em si já justificam trabalhos nessa linha. Referenciando Regnerus e Elder (2003), a autora afirma que

As igrejas reforçam as relações de suporte e controle familiar, assim como também normas baseadas no seu poder como uma instituição formal. A religião pode ser vista como uma segunda influência social nos adolescentes (sendo a família a primeira), assim como também a escola e os amigos, e é vista como capaz de afetar as crenças, atitudes e comportamento através de mecanismos como controle social, suporte social e valores (CUNHA 2012, p.02)

Percebe-se nessas afirmativas que a religiosidade como parte intrínseca das vivências pessoais e sociais não deveriam ser negligenciadas nas análises sócio-culturais e econômicas e, por conseguinte, no contexto educacional. Smith (2003, apud CUNHA 2012, p.96) sugere que a religião pode influenciar socialmente através de três dimensões: “1) ordem moral, 2) competência de aprendizado e 3) laços sociais e organizacionais”.
Em meio a essas reflexões e questionamentos, valendo-se da premissa que a religiosidade é preponderante no desempenho educacional e que a religião se manifesta de diferentes modos entre os indivíduos e seus grupos sociais, há de se considerar os processos que, no âmbito educacional, podem contribuir para o reconhecimento das identidades. Freire (1996) afirma que o ato de ensinar “exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural” (FREIRE, 1996, p.41). Pensando o processo educativo como processo dialético e dinâmico, o autor insiste queNão há prática docente verdadeira que não seja ela mesma um ensaio estético e ético [...]” (FREIRE, 1996, p.45) e propõe um exercício consciente e crítico na prática educacional, como uma vivência de reconhecimento de si para o reconhecimento do outro; é a proposta do “assumir-se”, em todas as suas dimensões e instâncias. Freire (1996, p.41) enfatiza que

Uma das tarefas mais importantes da prática educativa-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.

O respeito à identidade cultural, segundo o autor, é de fundamental importância para o desenvolvimento do que ele intitula de “prática educativa progressista”, integrando esta identidade cultural, à dimensão individual e coletiva dos educandos. Na concepção do autor seria a possibilidade de construção de um saber a partir do reconhecimento de si, através da “outredade”, ou seja, “a assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros” (FREIRE, 1996, p.41). Assumir a identidade cultural, manifestada implícita ou explicitamente no universo escolar, poderia abrir para uma construção coletiva e democrática do saber, que corresponda mais efetivamente com as peculiaridades das comunidades, o que seria uma atitude em si, mais ética e menos imperativa, contribuindo inclusive, para o acesso de grupos socialmente marginalizados – como os negros/afrodescendentes –, a um percurso educacional mais qualitativo.   
Na interface entre o contexto escolar – seja considerando fatores intra e extra-escolares – as questões referentes à identidade cultural vão se relacionar com a própria cultura escolar, sendo indicado esse aprofundamento, para um melhor entendimento das reflexões aqui elencadas. Segundo Julia (2001, p.10),

[...] poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

Na definição proposta pelo autor, que aborda a cultura escolar como objeto histórico, percebe-se a interdependência da cultura escolar com o que Júlia (2001, p.10) chama de “conjunto das culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular”; ou seja, a cultura escolar estaria baseada em práticas e na difusão de conhecimentos pré-definidos pelo próprio contexto social, também determinado pela conjuntura política, econômica e cultural daquele povo.
Situando a pesquisa junto à faixa-etária de seis a dez anos, entre alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, vale considerar o que diz Campos (2009, p.152), sobre o fato de alguns autores apresentarem “resistência em relação ao testemunho infantil como fonte de pesquisa confiável e respeitável”. A autora destaca ainda, a “importância da criança nas chamadas religiões afro-brasileiras”, além de outras religiões, mas ressalva que mesmo que estas alcancem algum destaque social, tal fenômeno acaba por “não ser problematizado teoricamente, permanecendo como resíduo nas observações etnográficas” (CAMPOS, 2009, p.151). Haveria nessa prática a pouca escuta da voz infantil e consequentemente certo descrédito do que viria da fala dos “pequenos”.
Na perspectiva de tentar relacionar a dinâmica entre a invisibilidade da religiosidade oriunda da matriz afro-brasileira nas escolas e a vivência das crianças nesse campo, em seu meio social, destaca-se a contribuição de Candau (2008, p.54), citando o “empoderamento” daqueles que no seu percurso histórico, foram alijados da possibilidade de influenciar em decisões coletivas. A autora orienta sobre a necessidade do trabalho com “grupos sociais minoritários, discriminados, marginalizados, etc.” (CANDAU, 2008, p.54), argumentando ainda sobre os desafios para uma “educação intercultural”, ressaltando:

As relações entre direitos humanos, diferenças culturais e educação colocam-nos no horizonte da afirmação da dignidade humana num mundo que parece não ter mais essa convicção como referência radical. Nesse sentido, trata-se de afirmar uma perspectiva alternativa e contra-hegemônica de construção social, política e educacional. (CANDAU, 2008, p.54)

Localizar essas diferentes identidades culturais, entrelaçadas com o universo religioso, objeto desta pesquisa, é também adentrar nessa seara de afirmação cultural, identitária que seria a própria afirmação da dignidade humana, como destaca Candau (2008, p.54). Permitindo que as crianças tenham voz e possam transparecer seus universos na construção de uma proposta de educação intercultural.
Na vertente da religiosidade de matriz afro-brasileira no campo da cultura, é destaque o que preconiza a Lei 10.639/2003, quando estabelece, no seu Art. 26-A, a obrigatoriedade para todos os estabelecimentos escolares, do “ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. E em relação ao conteúdo programático, o §1º do referido artigo, determina incluir “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil”, destacando ainda no §2º, que os conteúdos devem ser ministrados “no âmbito de todo o currículo escolar”.
Mas na interface curricular é importante considerar o que é explícito nos currículos e o que fica nas entrelinhas como um currículo oculto, que aparentemente não é visível, mas que está presente nos processos de ensino aprendizagem e pode vir a legitimar, em grande parte, as ideologias predominantes e/ou o que culturalmente tenta-se manter ou romper. Moreira e Candau (2007, p.22), vão assim conceituar currículo como:

Experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, permeadas pelas relações sociais, buscando articular vivências e saberes dos alunos com os conhecimentos historicamente acumulados e contribuindo para construir as identidades dos estudantes.

Percebe-se a amplitude da concepção, que parte do conceito de cultura como prática social e abre um leque de possibilidades entre os “saberes” dos alunos e os demais saberes institucionalizados, ou seja, espera-se que a concepção de um currículo totalmente impositivo, baseado numa ideologia para o controle social, tenha ficado pra trás, não devendo ocupar mais os bancos acadêmicos – pelo menos na ótica da intenção de uma educação transformadora.
Refletir sobre um currículo que atende ao que preconiza a Lei 10.639/2003 é também trazer à pauta os conteúdos que consideram as religiões de matriz afro-brasileira no seu aspecto cultural, histórico, social e também, na vivência religiosa de cada um ou nos grupos e segmentos representativos. Em um desdobramento dessas análises e reflexões, pode-se inferir que, na abordagem sobre as religiões que trazem consigo raízes afro-brasileiras, cabe atentar para o fato de que, parte da invisibilidade ou negação a estas manifestações, se dê pelo racismo aos grupos étnicos afro-brasileiros, levando a crer que, muito da chamada intolerância religiosa a essas práticas, seria manifestação de racismo. Possível seria ainda que o desvelar sobre as questões étnicas, envolvesse também a localização dos adeptos das religiões de matriz afro-brasileira na escola, reconhecendo os aspectos identitários que os representam, descortinando muitas das informações que ficam ocultas, delimitadas pelo que ainda seria ou não considerado como aceitável entre os grupos sociais.
Analisando o PRÉ-RELATÓRIO SOBRE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL (CCIR, 2015)[2], constata-se que, no caso das religiões afro-brasileiras, o percentual de registros de denúncias de discriminação e intolerância, é consideravelmente maior que as demais. No nível estadual, no caso do Rio de Janeiro, de 2012 a 2014 consta no relatório o percentual de 71,15% de casos contra as religiões afro-brasileiras. E na Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR), de 2008 a 2014, entre as religiões com maior número de Boletins de Ocorrência, constam 26% de registros de reclamantes das religiões afro-brasileiras, em contraponto a 15% de Espíritas – sendo que, o próprio relatório destaca a generalização que muitos fazem do seu pertencimento religioso, quando se declaram como espíritas, quando na verdade, professam religiões afro-brasileiras. Outro dado significativo que o relatório apresenta e que denota o possível silêncio na assunção religiosa de cada um, é que chegam a 70% nas notificações, os casos de agressão verbal, sendo mais comum nas ofensas, o uso de expressões como: “macumbeiros” e “filho do demônio”. O texto do relatório chama a atenção para o fato de que “as pesquisas revelaram ser uma estratégia de proteção declarar-se católico e/ou espírita, tanto nos empregos, quanto nas comunidades em que vivem” as pessoas, “considerando que há subenumeração no total de registros das religiões afro-brasileiras” (CCIR, 2015, p.8), mesmo que tenham sido realizadas campanhas por ocasião do Censo 2010. O texto suscita ainda alguns questionamentos e reflexões:

Por que o Candomblé com suas diferentes nações não são tipificados e apurados? É uma pergunta que o segmento religioso deve pensar e traçar trajetórias de realização. Não há igualdade de critério nas classificações. É necessário fazer um trabalho de valorização e aumento da autoestima, um caminho possível para vencer preconceitos, discriminações e intolerância de todos os tipos. (CCIR, 2015, p.9)

Dados como estes ajudam a enfatizar a necessidade de buscar cada vez mais a especificidade, as particularidades, valorizando e respeitando as condições de cada pessoa, na sua crença, origem, etnia e posição social. Trazer para o cotidiano escolar essas questões é fundamental, para que as pessoas assumam suas pertenças religiosas sem o medo de serem intituladas como os “filhos do demônio”.



[1] Destacam-se como fatores intraescolares, entre outros: clima; comportamento e atitudes dos alunos e do professor (motivação, dedicação e absenteísmo); conhecimento do professor sobre as avaliações de larga escala; organização e gestão da escola, condições físicas da sala de aula e, como fatores extraescolares: nível sócioeconômico dos alunos, suas condições de vida e subsistência. Fonte: Programa de Avaliação da Educação Básica do Sistema Mineiro de Avaliação e Equidade da Educação Pública – PROEB/SIMAVE – SEE/MG/ CAEd/UFJF, disponível em: <http://www.simave.caedufjf.net/> Acesso em 22 dez 2016.
[2] A CCIR – Comissão de Combate a Intolerância Religiosa em parceria com o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP); o Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER-IR/UFRJ) e o Movimento Inter-Religioso (MIR), realizaram levantamento e análise de fontes disponíveis sobre a questão da intolerância religiosa no Brasil, que culminou em um pré-relatório divulgado em agosto de 2015. Entre as fontes, os casos de denúncia sobre discriminação e intolerância religiosa através do “Disque 100”, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), indicando os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais no topo das denúncias. Disponível em: <http://www.ceubrio.com.br/downloads/relatorio-Intolerancia-religiosa-18-08-2015.pdf>. Acesso em 22 dez 2016.

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