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segunda-feira, 3 de setembro de 2012

SOBRE O TEXTO “AVALIAÇÃO EDUCACIONAL E CLIENTELA ESCOLAR” DE MAGDA SOARES

 Profª Claudia Conte[1]


Apresentado em 1978, pela Professora Magda Soares no Simpósio “A utilização da avaliação educacional para incrementar as oportunidades educacionais sociais”, o artigo “Avaliação Educacional e Clientela Escolar”, propõe uma análise crítica aos processos de avaliação educacional, descortinando o próprio processo em si, ou seja, na sua práxis, onde a autora chama a atenção para a utilização da avaliação educacional, muito mais como instrumento de controle do conhecimento e das hierarquias sociais, do que como fomento de oportunidades educacionais e sociais.
O texto, entre outros, integra o livro “Introdução à Psicologia Escolar” (Cap. 4, Parte I), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, organizado por Maria Helena Souza Patto, tendo sua primeira edição em 1981[2]. O livro, uma coletânea de textos na área da psicologia escolar, contribui de forma ampla na reflexão sobre desigualdades, escola pública, pobreza, relação entre professor e aluno, com textos que referenciam Bourdieur, numa análise de David Swartz; como também Paulo Freire na sua defesa da educação “libertadora” em contraponto com a educação “bancária” e demais autores. No transcurso de nossa história, calçamos nossas bases educacionais em ideários revolucionários, empunhando bandeiras da educação transformadora, da “educação como prática da liberdade” (Freire, 1993)[3].
No Brasil, agigantava-se, nas décadas de 70 e 80, um forte espírito para as grandes e providenciais reformas políticas, com destaque para o fim do governo militar e a chegada de Tancredo Neves à Presidência da República em 1985 – um presidente civil escolhido por voto indireto após um forte movimento social pelas “Diretas”. Três anos depois, em 1988, o Brasil publicava sua nova Constituição, garantindo amplos direitos humanos, embasados em princípios de igualdade, equidade, acesso aos bens e serviços, à educação e à saúde para todos.
Sobre o “controle do conhecimento”, Soares ressalta que a avaliação age em três abordagens: uma que define o que o aluno deve saber; a outra a abrangência desse saber, ou seja, até onde ele sabe e a outra, se o que ele sabe é da forma que deveria saber. Citando Bourdier Passeron (1975), a autora destaca que “a avaliação, na verdade, limita as oportunidades educacionais e sociais, na medida em que legitima determinada cultura em detrimento de outras e legitima determinada forma de relação com a cultura, em detrimento de outras formas”.
Quando fala sobre o “controle social”, a autora relaciona este com o próprio controle do conhecimento, uma vez que, a avaliação, ao determinar uma cultura em detrimento de outra, faz essas “escolhas” a partir do que é determinado pela cultura da classe dominante e a própria relação desta com a cultura. Assim, o que predomina segundo Soares, são as referências da classe dominante e a interpretação dessa parcela da população, das demais referências culturais da sociedade. Como num jogo de privilégios, o texto nos chama a atenção para o que está oculto na intencionalidade avaliativa, onde a relação do aluno, pertencente a camada dominante da sociedade, com o conhecimento que é aferido na avaliação é bem diferente da relação dos demais estudantes, pertencentes as classes populares. Para esses alunos, atrás de uma aparente avaliação de conhecimento, estão aprendizagens que extrapolam os muros escolares, existem antes, além e fora dela, por legitimação da própria desigualdade social, onde a minoria elege o que deveria ser para todos, mas que pela ordem e organização social, não é de livre acesso.
Ao destacar a expressão “oportunidades educacionais”, a autora transparece seu incômodo com o que considera um equívoco semântico e uma práxis distorcida que a expressão provoca no sistema educacional, sendo que para a mesma, o que ocorre realmente é a “aceitação da discriminação entre estudantes”. Essa discriminação legitimada estabeleceria o princípio da desigualdade entre os indivíduos e consequentemente a natural aceitação de uma desigualdade de resultados educacionais, que até mesmo isentaria a escola da responsabilidade quanto a esse fato.
E é explicando a justificativa da isenção de responsabilidade da escola nessas desigualdades, que o texto contribui com uma reflexão sobre os “dons inatos”, que justificaria a pretensa desigualdade de resultados educacionais pela “natural” desigualdade na capacidade intelectual dos indivíduos. Referenciando Young (1958), Soares destaca que para o autor “a capacidade intelectual, associada ao esforço definiria o mérito e esse seria o único critério de determinação do sucesso ou fracasso educacionais”. Em relação a meritocracia e ideologia do dom, o texto demonstra uma estreita relação onde, de certa forma, são ideologias que se retroalimentam. Essa idéia esta explicita na afirmação de Karier (1974), citado pela autora: “na utopia de uma sociedade aberta à meritocracia, todos irão receber seus prêmios apenas com base nos seus verdadeiros talentos naturais”. Esse enfoque fundamentalmente psicológico, que atrela o mérito escolar ao talento individual, ou seja, ao que cada aluno conquista com seus dons, contrapõe a idéia das ciências sociais que relacionam as capacidades intelectuais às condições de vida. São idéias opostas. Uma justificando a ascensão social pelo talento e a outra, relacionando a dificuldade de acesso à pré-condição desfavorável desse sujeito na sociedade, que acaba por fadar o sujeito a um subdesenvolvimento educacional pela limitação de um currículo reduzido, justificado pelo discurso da “educação para as diferenças individuais”.
Percebemos com esse texto, que podemos até de certa forma, considerar inovador para a época em que foi à público, a visão crítica da autora ao que ela insistentemente ressalta como dissimulação da verdadeira intencionalidade no controle social hierárquico, ou ainda do que é “mascarado” nos processos de avaliação, onde os sistemas educacionais implicitamente exercem o controle do conhecimento. Numa fala muito direta e que chega a soar como “palavra de ordem” das bandeiras libertárias da educação – típica do momento político da época – Magda Soares parece enxergar adiante no nosso processo educacional e o alerta aqui destacado de forma tão veemente, ecoa em nossos ouvidos como um alerta ao que hoje vivenciamos na educação. No nosso atual momento, onde a avaliação, mais do que nunca, é alvo e palco de tantas políticas educacionais, pensar na “intencionalidade” das avaliações e nos “controles”, sejam estes, camuflados ou explícitos, é fundamental para uma dinâmica que se pretende desenvolver qualitativamente.
A forte conotação política e visível insatisfação e desconforto com a realidade vivenciada, externada pela crítica ao sistema educacional como instrumento de manipulação da classe dominante, é percebida claramente no texto como: “a desigualdade de resultados é aceita como natural e por ela não se responsabiliza a escola; o fato de igualar as oportunidades isenta de responder pela desigualdade de trabalho”. Citando Charlot (1977), na afirmativa de “que a escola reduz o social ao individual e isola a educação das realidades econômicas e sociais que a condicionam a fim de camuflar seu papel no jogo das desigualdades sociais”, Soares não sussurra suas idéias, ela parece ‘gritar’ com sua ‘fala’ o cuidado que precisamos ter na nossa práxis e na nossa busca de referências, alertando-nos que a avaliação é um fácil e “grande instrumento” de “dissimulação, camuflagem e mistificação”.
Na corrente dos ‘novos tempos’, foi também no final da década de 80 que inauguramos a rotina de avaliação educacional no Brasil, anunciando as políticas de responsabilização. O prenúncio da Professora Magda Soares nos sinaliza aos cuidados com a prevalência da meritocracia e da dicotomia entre a intencionalidade e a realidade, como também, o cuidado com o que privilegiamos no currículo, o que é real, oculto ou idealizado.


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REFERÊNCIAS

BROOKE, Nigel. Marcos Históricos na reforma da educação. 1. ed. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2012.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.

PATTO, Maria Helena Souza [org.]. Introdução à psicologia escolar. 3. Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. Cap. 4, Parte I, p. 51-59: SOARES, Magda Becker. Avaliação educacional e clientela escolar. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=krd6zhqih88C&pg=PA51&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=true> Acesso em 17 ago 2012.


[1] A Profª Claudia Conte dos Anjos Lacerda é Pedagoga, com Especialização em Educação Inclusiva e Mestranda Profissional em Gestão e Avaliação da Educação Pública, pelo CAEd/UFJF. Atua como Supervisora Escolar na Rede Municipal de Leopoldina e Professora de Educação Básica na Rede Estadual de Minas Gerais.

[2] Em 1981 o livro foi editado pela T.A. Queiroz Editor, sendo reeditado, já em 1997 (3. ed.), pela Casa do Psicólogo Livraria e Editora, São Paulo.

[3] A primeira edição do livro de Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade, foi em 1967, tendo ele escrito o livro em seu período de exílio. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.

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